terça-feira, 15 de julho de 2014

Gilbert Keith Chesterton






parte 1/2 (1 de 2)



O VERDADEIRO PROBLEMA com este nosso mundo não é que se trata de um mundo sem razão, nem tampouco de um mundo razoável. O tipo mais comum de problema é que se trata de um mundo quase razoável, mas não totalmente. A vida não é um ilogismo; todavia, é uma cilada para os lógicos. Parece simplesmente um pouco mais matemática e regular do que é; sua exatidão é óbvia, mas sua inexatidão está escondida; sua loucura está à espreita. Vou dar um exemplo grosseiro do que quero dizer. Suponhamos que alguma criatura matemática proveniente da lua examinasse o corpo humano; ela imediatamente veria que o fato essencial nesse caso é que o corpo é duplicado. Um homem contém dois homens: um à direita que se parece exatamente com outro à esquerda. Depois de notar que há um braço do lado direito e outro do lado esquerdo, uma perna à direita e outra à esquerda, ela poderia ir adiante e ainda encontrar de cada lado o mesmo número de dedos nas mãos, o mesmo número de dedos nos pés, olhos geminados, orelhas geminadas, narinas geminadas e até lobos do cérebro geminados. No mínimo ela tomaria o fato como lei; e depois, quando encontrasse um coração de um lado, ela deduziria a presença de outro coração do outro lado. E exatamente nesse momento, no ponto em que se sentisse mais segura de estar certa, ela estaria errada.

É esse silencioso desvio milimétrico da precisão que constitui o elemento misterioso presente em tudo. Parece uma espécie de traição secreta do universo. Uma maçã ou uma laranja é redonda o suficiente para ser chamada de redonda, e, no entanto, no fim das contas, não é redonda. A própria Terra tem a forma de uma laranja para induzir algum simples astrônomo a chamá-la de globo. Em inglês dizemos "uma lâmina de grama" em alusão à lâmina de uma espada, porque ambas têm uma extremidade pontuda; mas não é bem assim.

Em todas as coisas, em toda parte, existe o elemento do misterioso e do incalculável. Ele foge aos racionalistas, mas só escapa no último momento. Da grande curvatura da Terra alguém poderia facilmente inferir que cada centímetro dela apresentasse a mesma curva. Pareceria racional que, assim como um ser humano tem um cérebro de ambos os lados, ele devesse ter um coração dos dois lados. Todavia, os cientistas ainda estão organizando expedições para descobrir o Pólo Norte, porque eles gostam tanto de paisagens planas. Os cientistas estão organizando expedições para descobrir o coração do ser humano; e quando tentam descobri-lo, geralmente procuram do lado errado. Ora, a verdadeira percepção ou inspiração é mais bem testada quando se observa se ela detecta essas malformações ou surpresas ocultas. Se o nosso matemático da lua visse dois braços e duas orelhas, ele poderia deduzir as duas omoplatas e as duas metades do cérebro. Mas se ele adivinhasse que o coração do homem estava no lugar certo, então eu deveria chamá-lo de algo mais que um matemático.

Ora, essa é exatamente a reivindicação que venho fazendo para o cristianismo. Não simplesmente que ele deduz verdades lógicas, mas que quando de repente se torna ilógico, ele encontrou, por assim dizer, uma verdade ilógica. Ele não apenas acerta em relação às coisas, mas também erra (se assim se pode dizer) exatamente onde as coisas saem erradas. Seu plano se adapta às irregularidades ocultas e espera o inesperado. E simples no que se refere à verdade sutil. Admite que o homem tem duas mãos, mas não admite (embora todos os modernistas lamentem o fato) a dedução óbvia de que tenha dois corações.

Meu único propósito neste capítulo é mostrar isso; mostrar que quando sentimos a existência de algo estranho na teologia cristã, geralmente vamos descobrir que existe algo estranho na verdade.

Eu aludi a uma frase absurda que afirmava que não se pode crer neste ou naquele credo em nossa época. E claro que se pode acreditar em qualquer coisa em qualquer época. Mas, embora pareça estranho, há de fato um sentido em que um credo, quando digno de alguma crença, pode ser abraçado mais firmemente numa sociedade complexa do que numa simples. Se um homem julgar que o cristianismo é verdadeiro em Birmingham, ele realmente tem razões mais claras para ter fé do que se o tivesse julgado verdadeiro em Mércia. Pois quanto mais complicada parecer a coincidência, tanto menos ela pode ser uma coincidência. Se caíssem flocos de neve na forma, digamos, do coração de Midlothian,13 poderia ser um acidente. Mas se caíssem flocos de neve com a forma exata do labirinto de Hampton Court, acho que se poderia chamar isso de milagre.

É exatamente esse tipo de milagre que passei a perceber na filosofia do cristianismo. A complicação do nosso mundo moderno prova a verdade do credo mais perfeitamente do que qualquer um dos simples problemas das épocas de fé. Foi em Notting Hill e Battersea que comecei a ver que o cristianismo era verdadeiro. E por isso que a fé tem aquela elaboração de doutrinas e detalhes que tanto incomoda os que admiram o cristianismo sem acreditar nele. Quando alguém abraça uma crença, essa pessoa se sente orgulhosa de sua complexidade, como os cientistas se sentem orgulhosos da complexidade da ciência. O fato mostra como ela é rica em descobertas.

Se a crença simplesmente está certa, é um elogio dizer que ela é elaborada. Uma vareta poderia encaixar-se perfeitamente num buraco, ou uma pedra num vão, por mero acaso. Mas uma chave e uma fechadura são ambas complexas. E se uma chave se encaixa numa fechadura, você sabe que se trata da chave certa.

Mas essa complicada exatidão da coisa dificulta grandemente o que me proponho fazer agora: descrever esse acúmulo de verdade. Fica muito difícil para um homem defender alguma coisa da qual ele está inteiramente convencido. E comparativamente fácil quando se está convencido em parte. Ele está convencido apenas em parte porque descobriu esta ou aquela prova da coisa, e consegue explicá-la. Mas ninguém se sente realmente convencido acerca de uma teoria filosófica quando apenas descobre alguma coisa para prová-la.

A pessoa fica realmente convencida quando descobre que tudo prova aquela teoria. E quanto mais numerosas forem as razões apontando para essa convicção, tanto mais confusa ela ficará se de repente for solicitada a resumi-las. Assim, se alguém perguntasse a um homem de inteligência comum, de supetão: "Por que você prefere a civilização à selvageria?", ele olharia desesperado ao redor contemplando um objeto depois do outro, e só saberia responder vagamente: "Bem, existe esta estante de livros... e o carvão na caixa de carvão... e pianos... e a polícia". Toda a argumentação em defesa da civilização consiste no fato de que a argumentação em sua defesa é complexa. A civilização fez tantas coisas. Mas essa mesma multiplicidade de provas que deveria tornar a resposta irrefutável torna-a impossível.

Portanto, toda convicção completa está envolvida numa espécie de desamparo. A crença é tão enorme que se exige muito tempo para colocá-la em ação. Essa hesitação, muito estranhamente, surge sobretudo de uma indiferença acerca do ponto onde se deveria começar. Todas as estradas conduzem a Roma; e isso é uma razão que explica por que muitos nunca chegam lá. No caso desta defesa da convicção cristã confesso que eu tanto poderia começar a discussão com uma coisa quanto com outra; poderia começar com um nabo ou um táxi. Mas, se eu tiver de ter o mínimo de cuidado para esclarecer o que quero dizer, será mais sensato, na minha opinião, continuar os argumentos gerais do último capítulo, que tinha como objetivo insistir na primeira dessas coincidências, ou melhor, ratificações místicas.

Tudo o que eu até então ouvira sobre a teologia cristã me alienara dela. Eu era pagão aos doze anos de idade e um perfeito agnóstico aos dezesseis; e não posso entender ninguém que ultrapasse os dezessete anos sem ter-se feito uma pergunta tão simples. Eu retive, de fato. uma obscura reverência por uma deidade cósmica e um grande interesse histórico pelo Fundador do cristianismo. Mas certamente o via como um homem; embora talvez achasse que, mesmo sob esse aspecto, ele levasse vantagem sobre alguns de seus críticos modernos.

Li a literatura cética e científica do meu tempo — tudo nesse campo, pelo menos tudo o que pude encontrar em língua inglesa ao alcance de minhas mãos; e não li mais nada; quero dizer, mais nada de qualquer outro cunho filosófico. As obras sensacionalistas que também li pertenciam de fato a uma tradição heróica e sadia do cristianismo; mas eu não sabia disso naquele tempo. Nunca li uma linha de apologética cristã. Leio o menos possível disso atualmente.

Foram Huxley, Herbert Spencer e Bradlaugh que me trouxeram de volta à teologia ortodoxa. Eles me semearam na mente as primeiras fortes dúvidas da dúvida. Nossas avós estavam muito certas quando diziam que Tom Paine e os livres-pensadores perturbavam a cabeça. Perturbavam mesmo. Perturbaram a minha de um modo horrível. O nacionalista me fez perguntar se a razão tinha alguma utilidade qualquer; e, quando terminei Herbert Spencer, eu já fora tão longe que duvidei (pela primeira vez na vida) se a evolução havia sequer acontecido. Quando depus a última das palestras atéias do Coronel Ingersoll, irrompeu o terrível pensamento: 'Tu quase me persuadiste a ser cristão". Eu o era de um modo desesperado.

Esse estranho efeito dos grandes agnósticos despertando dúvidas mais profundas do que aquelas que eles mesmos alimentavam poderia ser ilustrado de muitas maneiras. Tomo apenas uma. A medida que eu lia e relia todas as explicações não-cristãs ou anticristãs da fé, de Huxley a Bradlaugh, uma lenta e terrível impressão se formava gradativa mas graficamente em minha cabeça — a impressão de que o cristianismo deve ser maximamente extraordinário. Pois ele, no meu modo de entender, não só tinha os vícios mais ardentes, mas aparentemente tinha um talento místico para combinar vícios que pareciam incompatíveis entre si.

O cristianismo era atacado de todos os lados e por todas as razões contraditórias. Mal um nacionalista acabara de demonstrar que ele pendia demais para o oriente, outro demonstrava com igual clareza que ele pendia demais para o ocidente. Mal a minha indignação se arrefecera diante de sua configuração quadrada angular e agressiva, minha atenção era novamente chamada para observar e condenar sua irritante natureza redonda e sensual. Caso algum leitor não tenha percebido aquilo de que estou falando, vou dar aleatoriamente os exemplos de que me lembro para ilustrar a contradição interna dos ataques dos céticos. Apresento quatro ou cinco casos; tenho mais cinqüenta.

Assim, por exemplo, eu me comovia muito com o eloqüente ataque contra o cristianismo pelo seu pessimismo desumano; pois eu pensava (e ainda penso) que o pessimismo sincero é o pecado que não tem perdão. O pessimismo insincero é um refinamento social, mais agradável que desagradável; e felizmente quase todo pessimismo é insincero.

Mas se o cristianismo era, como essas pessoas diziam, algo puramente pessimista que se opunha à vida, então eu estava perfeitamente preparado para explodir a Catedral de São Paulo em Londres. O fato, porém, extraordinário era o seguinte: Eles me provavam no Capítulo 1, para minha plena satisfação, que o cristianismo era demasiado pessimista; e depois, no Capítulo 2, começavam a me provar que ele era, em grande parte, otimista demais. Uma acusação contra o cristianismo dizia que ele, com suas mórbidas lágrimas e terrores, impedia que os homens buscassem a alegria e a liberdade no seio da natureza. Mas outra acusação era que ele confortava os homens com uma providência fictícia, e os situava num mundo cor-de-rosa e branco.

Um grande agnóstico perguntava por que a natureza não era suficientemente bonita, e por que era difícil ser livre. Outro grande agnóstico objetava que o otimismo cristão, "o manto do faz-de-conta tecido por mãos piedosas", escondia de nós o fato de que a natureza era feia, e era impossível ela ser livre. Um racionalista mal terminara de chamar o cristianismo de pesadelo, e outro já começava a chamá-lo de falso paraíso.

Isso me intrigava; as acusações pareciam inconsistentes. O cristianismo não podia ser, ao mesmo tempo, a máscara negra de um mundo branco, e também a máscara branca de um mundo negro. A condição do cristão no mundo não podia ser, ao mesmo tempo, tão confortável que era uma covardia agarrar-se a ela, e tão desconfortável que era uma loucura suportá-la. Se o cristianismo falsificava a visão humana, devia falsificá-la de um jeito ou de outro; ele não podia usar óculos que eram verdes e também cor-de-rosa. Eu saboreei com alegria enorme, como fizeram todos os jovens daquela época, os sarcásticos insultos desferidos por Swinburne contra a insipidez do credo...

Tu conquistaste, ó pálido Galileu; o mundo com teu hálito assumiu a cor cinza.14

Mas quando eu li as explicações do paganismo dadas pelo mesmo poeta (como, por exemplo, em "Atalanta"), concluí que, possivelmente, antes de o Galileu respirar sobre ele, o mundo era ainda mais cinza. De fato, o poeta defendia, em abstrato, que a vida em si era negra como o breu. E, mesmo assim, o cristianismo de algum modo a obscurecera. O mesmo homem que acusava o cristianismo de pessimismo era ele também um pessimista. Achei que devia haver algo de errado nisso. E por um louco instante passou-me pela cabeça que os melhores juizes para julgar a relação da religião com a felicidade talvez não fossem aqueles que, segundo seus próprios relatos, não tinham nem uma coisa nem outra.

Deve-se entender que não fui precipitado ao concluir que as acusações eram falsas ou os acusadores eram tolos. Simplesmente deduzi que o cristianismo devia ser algo até mais estranho e mais perverso do que eles imaginavam. Uma coisa poderia ter esses dois vícios contraditórios; mas, nesse caso, deveria ser uma coisa bastante esquisita. Um homem poderia ser gordo demais num ponto e magro demais em outro; mas ele seria uma figura estranha. A essa altura os meus pensamentos concentravam-se apenas na figura estranha da religião cristã; eu não alegava a existência de nenhuma figura estranha na mente racionalista.

Aqui está outro argumento da mesma natureza. Eu senti que um forte argumento contra o cristianismo residia na acusação de que existe algo de tímido, monástico e pouco viril envolvendo tudo o que é chamado de "cristão", especialmente em sua atitude perante a resistência e a luta. Os grandes céticos do século XIX eram muito viris. Bradlaugh de um modo expansivo, Huxley de um modo reticente, foram sem dúvida homens. Numa comparação, parecia-me claro que havia algo de fraco e por demais paciente envolvendo os conselhos cristãos. O paradoxo do evangelho sobre a outra face, o fato de os sacerdotes jamais lutarem, uma centena de coisas tornava plausível a acusação de que o cristianismo era uma tentativa de fazer o homem parecer-se demais com a ovelha.

Li isso e acreditei, e, se não tivesse lido nada em contrário, teria continuado acreditando. Mas li algo muito diferente. Passei à página seguinte do meu manual agnóstico, e meu cérebro ficou de cabeça para baixo. Agora eu descobria que tinha de odiar o cristianismo não por ele lutar pouco demais, mas por sua luta excessiva. Parecia que o cristianismo era a matriz de todas as
guerras. Ele inundara o mundo de sangue.

Eu ficara absolutamente zangado com o cristão porque ele nunca se zangava. E agora pediam-me que me zangasse com ele porque sua raiva tinha sido o maior e mais horrível fenômeno da história humana; porque sua raiva ensopara a terra e obscurecera o sol. As mesmas pessoas que censuravam o cristianismo pela brandura e não-resistência dos seus mosteiros também o censuravam pela violência e pelo valor das Cruzadas. Foi por culpa do pobre e velho cristianismo (de um jeito ou de outro) que Eduardo, o Confessor, não quis lutar, ao passo que Ricardo Coração de Leão o fez. Os quacres, diziam-nos, eram os únicos cristãos típicos; e, no entanto, os massacres de Cromwell e Alva eram típicos crimes cristãos.

O que poderia significar tudo isso? O que era esse cristianismo que sempre proibia a guerra e sempre produzia guerras? Qual poderia ser a natureza dessa coisa que se podia xingar primeiro porque não lutava e, segundo, porque estava sempre lutando? Em que mundo enigmático nascera esse monstruoso assassinato e essa monstruosa brandura? A configuração do cristianismo assumia uma figura mais estranha a cada instante.

Apresento um terceiro argumento; o mais estranho de todos, porque envolve a única verdadeira objeção à fé. A única objeção real à religião cristã é simplesmente que ela é uma única religião. O mundo é um lugar amplo, cheio de tipos de pessoas muito diferentes. O cristianismo (alguém poderia razoavelmente dizer) é uma única coisa que se limita a uma única espécie de gente; começou na Palestina e praticamente parou com a Europa.

Eu me sentia devidamente impressionado com esse argumento na juventude, e muitas vezes me sentia atraído para a doutrina freqüentemente pregada pelas Sociedades Éticas — isto é, a doutrina de que existe uma única grande igreja inconsciente de toda a humanidade, estruturada sobre a onipresença da consciência humana. Os credos, diziam, dividem os homens; mas pelo menos as doutrinas morais os uniram. A alma pode buscar as terras e épocas mais estranhas e remotas e lá ainda encontra o senso comum ético essencial. Ela poderia encontrar Confúcio debaixo de árvores orientais, e ele estaria escrevendo: "Não furtarás". Ela poderia decifrar o mais obscuro hieróglifo no mais primitivo deserto, e o significado decifrado seria: "As crianças devem dizer a verdade".

Eu acreditava nessa doutrina da fraternidade de todos os homens na posse do senso moral, e ainda acredito nisso — junto com outras coisas. E ficava totalmente aborrecido com o cristianismo por sugerir (segundo eu imaginava) que épocas inteiras de seres humanos haviam sido totalmente privados dessa luz da justiça e da razão. Mas depois eu descobri uma coisa assombrosa. Descobri que as mesmas pessoas que diziam que a humanidade era uma única igreja de Platão a Emerson também diziam que a moralidade havia mudado totalmente, e o que era certo numa época era errado em outra.

Se eu pedisse, digamos, um altar, diziam-me que não precisava disso, pois os homens, nossos irmãos, proferiam claros oráculos e um único credo em seus costumes e ideais universais. Mas se eu discretamente insistisse que um dos costumes universais dos homens era ter um altar, então os meus agnósticos professores assumiam uma posição diametralmente oposta e me diziam que os homens sempre haviam vivido nas trevas com superstições de selvagens. Eu descobri que era seu escárnio diário contra o cristianismo dizer que ele era a luz de um único povo e deixara todos os outros morrerem nas trevas.

Mas eu também descobri que era sua especial vangloria dizer que a ciência e o progresso eram descobertas de um único povo, e todos os outros povos haviam perecido nas trevas. Seu principal insulto ao cristianismo era de fato sua principal vangloria, e parecia haver uma estranha injustiça envolvendo toda a sua relativa insistência nas duas coisas. Quando se tratava de algum agnóstico ou pagão, devíamos nos lembrar de que todos os homens tinham uma única religião; quando se tratava de algum místico ou espiritualista, devíamos apenas considerar como eram absurdas as religiões que alguns homens acalentavam. Podíamos confiar na ética de Epíteto, porque a ética não mudava nunca. Não devíamos confiar na ética de Bossuet, porque a ética havia mudado. Ela mudava em duzentos anos, mas não em dois mil.

O caso começou a ficar alarmante. Não parecia tanto que o cristianismo era suficientemente perverso a ponto de incluir qualquer vício, mas sim que qualquer pau era bom para bater nele. Como seria essa coisa assombrosa que as pessoas queriam tanto contradizei; a ponto de fazê-lo sem importar-se em contradizer a si mesmas?

Eu via a mesma situação de todos os lados. Não posso dedicar mais espaço para discutir este caso em detalhes; mas, para que ninguém suponha que escolhi injustamente três argumentos acidentais, vou mencionar brevemente mais alguns. Assim, certos céticos escreveram que o grande crime do cristianismo fora o seu ataque contra a família; ele arrastara as mulheres à solidão e contemplação do claustro, longe de sua casa e filhos.

Mas, em contrapartida, outros céticos (ligeiramente mais avançados) disseram que o grande crime do cristianismo foi obrigar-nos ao casamento e à constituição de uma família; que o cristianismo condenava as mulheres à escravidão de sua casa e filhos, e lhes proibia a solidão e a contemplação. A acusação foi realmente invertida. Ou, ainda, certas frases das epístolas ou do ritual do casamento, na opinião de anticristãos, mostravam desprezo pelo intelecto da mulher. Mas descobri que os próprios anticristãos nutriam o desprezo pelo intelecto feminino; pois sua grande chacota contra a igreja na Europa era que "apenas mulheres" a freqüentavam.

Ou então, o cristianismo era censurado por seus hábitos despojados e estéreis; pelo burel e as ervilhas secas. Mas no minuto seguinte o cristianismo era censurado por sua pompa e ritualismo; seus templos de pórfiro e paramentos de ouro. Ele era ofendido por ser simples demais e por ser demasiado colorido. De novo, o cristianismo sempre fora acusado de limitar em excesso a sexualidade, quando o malthusiano Bradlaugh descobriu que ele a limitava pouco demais. Ele é muitas vezes acusado ao mesmo tempo de afetada respeitabilidade e de extravagância religiosa.



13 Condado escocês. A expressão "coração de Midlothian" refere-se a seu brasão.

14 Thou hast conquered, O pale Galilaean, the world has grown gray witli Thy breath.



Chesterton, G.K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, pp. 85-94.


FIM DA PARTE 1


NOTA: O texto acima é a primeira parte do capítulo VI, "Paradoxos do Cristianismo", do livro "Ortodoxia" do G.K. Chesterton. A tradução é a da ed. Mundo Cristão (não encontrei outras em pdf e nem o texto completo em site algum). Depois pretendo postar outras traduções, mesmo que precise eu mesmo fazer a transcrição.

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